Teclado Quebrado

Pronto! Lá se foi o teclado do computador, assim como a porta da sapateira, a cadeira de madeira, o prato de louça e a porta do banheiro. No momento da raiva, os pensamentos parecem fugir da minha cabeça, não enxergo o objeto. Seguro em minhas mãos uma bola de energia que explode e desaparece quando em atrito com a parede. As peças do teclado se espalham pelo chão. Me acalmo juntando os fragmentos destruídos. Ainda funciona, mas a tecla espaço nunca mais será a mesma.

                                                                                    Calíope Philippe

 

...

                                  

                                  Edward Monkton

A Flor e a Náusea

"Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor."

Carlos Drummond de Andrade

Sonho Estranho

Água, muita água. Andava debaixo da água e meu corpo era pesado e leve ao mesmo tempo. Conseguia respirar ou não respirava? Não sentia falta do ar. Estava com medo, muito medo. As pessoas se estranhavam, algo as controlava. Debaixo da água tudo era azul.

                                                                               Calíope Philippe

(Barbara Cole)

Áspera

Não penso
Não ouso
Não quero
Não sinto
Não minto
Não amo

Calíope Philippe

Espero...

um dia poder sorrir
sem hipocrisia
sem dependência
Espero um dia
poder sorrir
do nada,
da vida que dá errado
Do pouco que me resta de ar.

                            Calíope Philippe

Robert and Shana ParkeHarrison - Gray Dawn

Motivo

"Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada."

                            Cecília Meireles

Johanna Wright

Evolução

"O que mais me impressiona, à vista do macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser o nosso futuro. "


                                                          Mario Quintana - Caderno H
 

Eu

Eu sou eu, as vezes “eus”.
Sou meu eu, ou o eu de outrem.
Sou eu o eu, um eu em tantos...
De todos sou eu o eu de meus “eus”.
Sou eu o eu meu.

Calíope C. Philippe

Martin Stranka

O Palco

Engraçado... Pensei que com o passar do tempo não sentiria mais o borboletar na barriga. Me enganei.

                                                                    Calíope Philippe

O Trem

Pés, mãos, pernas, cotovelos
Suor, corpos, odor, cabelos
Empurra, chuta, tosse, pisa
Freio, queda, amassa, briga
Gente, quente, ar pesado
Força a porta, quebra o salto
Todo o sempre a mesma luta
Dia e noite, nunca muda.

               Calíope Philippe

O Pássaro

Foste um passarinho, voara alto, folhas secas no chão...

                                                     Calíope Philippe

O Centro

A fumaça entope as narinas dos que passam pelo lugar. Sejam eles mendigos que vasculham o lixo ou belas moças que distraem-se comprando sapatos. O povo se aglomera entre diversas barracas que se espalham por metros de rua. O som das ofertas gritadas e as buzinadas constantes unem-se em uma irritante sinfonia.

O centro caracteriza-se tanto pelo contraste do colorido emitido pelas lonas que cobrem as diversas barracas com o cinza dos edifícios que alcançam o céu, como pela indiferença dos esnobes que divertem-se com a sofisticada arquitetura do lugar ou os pobres que ali sobrevivem.

                                                                                           Calíope Philippe

Telemarketing - Experimento Narrativo

Acordei assustada. O telefone tocou eu estava no quarto. Não atendi. Ele tocou novamente. Fui em sua direção, a cada passo sentia estar mais perto do esperado. Seria ela?

Uma sensação estranha pairava sobre o meu ser. Era como se todo o meu corpo estivesse acordado. O toque do telefone era quase ensurdecedor. Os meus sentidos estavam aguçados. Não devia ter bebido tanto na noite passada.

Atendi o telefone receosamente. Era ela, a moça de voz insuportavelmente aguda. Enquanto ela falava sobre as milagrosas facilidades de pagamento do curso gratuito que eu acabava de ganhar pela décima Quarta vez, eu imaginava o percurso que o som estranho da sua voz fazia ao chegar no meu ouvido.

Imaginava eu que, por trás de metros de fio telefônico, encontrava-se uma moça feia e de mente vazia. Sua voz aparentava ser a de uma senhora de noventa e cinco anos. As vezes, intercalava os timbres em volumes altos e baixos, o que me fazia lembrar o choro de uma criança mimada.

Após alguns minutos e muito gerúndio, desliguei o telefone e voltei à minha cama. Sua voz estranha ainda ecoava em meus ouvidos.

                                                                                        Calíope Philippe

O Ultimo Poema

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

                                                                                Manuel Bandeira

 (Van Gogh)

Sem Lirismo

Sem lirismo!
sem poema
mente pequena
Sem lirismo
sem sentimento
sem tristeza
sem proeza
Sem lirismo!
sem vida
sem poesia
sempre fria
Sem lirismo!
sem a rima
segue a sina
sem tormenta
Sem lirismo!
sem o pranto
ou o riso
Sem espanto!
sem encanto
Sem lirismo!

Caliope Philippe

Robert and Shana ParkeHarrison - Mourning Cloak I

A Morte

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada !
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.

(Vinícius de Moraes)

Robert & Shana Parkeharrison - BloodRoot

A escada

Ele morreu tentando trocar uma lâmpada.

                                    Caliope Philippe

Contradição

Vejo homens sujos
geralmente velhos
normalmente mudos
Alguns se arriscam a cantar
outros limitam-se a pedir
a indiferença os acompanha
"Mais um dia. Mais uma luta"
sussurrou um deles ao remexer o lixo
Assobiou uma canção conhecida
e sorriu.
Em sua face, contradição
seus lábios sorriam
seus olhos não.

Calíope Philippe

Nietzsche disse:

“E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos ― necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós.”

                                                                                                    Nietzsche

(Garota em um espelho - Pablo Picasso)

Vida

"E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida
como a de há pouco, franzina
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina"

(Jão Cabral de Melo Neto)

A Massa

Eu faço parte da massa
a massa que se maltrata
a massa que se faz escrava
que veste sua máscara
e que em sua mente encrava
a vida que nunca conhecera
A grande que se faz pequena
e não compreende
o que a muito esquecera
a massa que se aprisiona
em uma realidade fictícia
e fecha-se em uma praga vitalícia
A massa de recolhedores de migalhas
que recolhe dores apreendidas
em suas ideologias protegidas
em suas vidas mal vividas
em seu ar mal respirado
em seu corpo maltratado
pelo cansaço alcançado
em mais um dia de trabalho
Trabalho este que não a eleva ao topo
mas faz-se perder pouco a pouco
a esperança que nela padece

Calíope C. Philippe